sexta-feira, 18 de julho de 2014

MENSAGEM de Fernando Pessoa- BRAZÃO
II- OS CASTELLOS
Terceiro- O CONDE D. HENRIQUE
Quarto- D. TAREJA
..Ouça aqui o poema (para estudantes de português)Ilustração de Carlos Alberto Santos
Todo começo é involuntário.
Deus é o agente.
O heroe a si assiste, vário
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
"Que farei eu com esta espada?"

Ergueste-a, e fez-se.
D.TAREJA . . . (ouvir aqui o poema)
As naçôes todas são mystérios.
Cada uma é todo o mundo a sós.
Ó mãe de reis e avó de impérios,
Vella por nós!

Teu seio augusto amamentou
Com bruta e natural certeza
O que, imprevisto, Deus fadou.
Por elle reza!

Dê tua prece outro destino
A quem fadou o instincto teu!
O homem que foi o teu menino
Envelheceu.

Mas todo vivo é eterno infante
Onde estás e não há o dia.
No antigo seio, vigilante,
De novo o cria!
Comentários:
D.Henrique: "Todo o começo é involuntário. Deus é o agente"- exprime a ideia de Fernando Pessoa segundo a qual o Destino rege inexoravelmente a História e foi traçado por Deus desde a origem dos tempos. Assim, aqueles que, na Terra, determinam a História não são mais do que agentes da vontade primeva de Deus e assistem aos seus próprios actos confusos ("vários") e inconscientes de estar a cumprir um plano.
"À espada em tuas mãos achada... etc"- A ideia anterior é particularizada para o pai de D.Afonso Henriques, que talhou à espada os alicerces da futura independência de Portugal. Confuso, pegou em armas e inconscientemente cumpriu a sua missão na Terra... O trabalho que lhe estava destinado "fez-se" (isto é, cumpriu-se, não por sua vontade, mas pela de Deus).
D.Tareja (versão arcaica do nome de D.Teresa, mãe de Afonso Henriques): "cada nação é todo o mundo a sós"- cada nação constitui um todo que, enquanto tal, é diferente de todas as outras;
"mãe de reis e avó de impérios"- refere-se à linhagem real portuguesa que dela originou e ao futuro Império.
"...com bruta e natural certeza"- "bruta" significa aqui "de acordo com a natureza" e portanto "bruta e natural" constitui um pleonasmo (isto é, uma repetição).
"o que, imprevisto, Deus fadou."- Aquele que Deus determinou (que fundasse Portugal- isto é, Afonso Henriques). "imprevisto" porque improvável- o primeiro rei de Portugal enfrentou guerras contra o poderoso reino de Castela e Leão, e contra os potentados islâmicos. As probabilidades de sucesso pareciam, à partida, muito remotas, de onde a improbabilidade.
"dê tua prece outro destino"- faz com que Afonso Henriques seja visto pela História a uma luz mais favorável (ver a NOTA final).
"Mas todo vivo é eterno infante/ Onde estás e não há o dia"- no reino dos mortos Afonso Henriques é sempre menino para a sua mãe (?).
"No antigo seio vigilante de novo o cria"- dá-nos outro lider do mesmo calibre (?)
.-Ouça aqui o poema (para estudantes de português).
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Lisboa, Portugal. Agosto 31, 2003
 
Revisto Janeiro 13 e Fevereiro 03, 2004
João Manuel Mimoso
  
English versionAn introduction to the poems: The Counts of Portugal, Henry and Teresa, were the parents of Afonso I Henriques who, in 1140, would become the founder and first king of Portugal. With his sword Count Henry secured the borders of the hereditary fiefdom he would bequeath to his son. The founding of a dynasty symbolically justifies one of the castles in the Portuguese coat of arms and gives to Pessoa the opportunity to dwell into one of his recurring themes: History is a fabrication of God the Creator, that has been set since before man; predetermined, it is called Destinybefore it happens, and History after it does. History and Destiny are the very same succession of events; the Present is the moment when Destiny becomes History! In this vision the hero is the unconscious performer of God's Master Plan. Such was Count Henry, according to this poem.
Countess Teresa is, perhaps surprisingly, symbolized by one more castle. Widowed, she ruled for over a decade but then refused to relinquish power until defeated in battle against her son. An old tradition (seemingly inspired by a lost piece of fiction written over a century later, itself suggested by an episode that actually happened with different people) holds that, after the victory, Afonso Henriques imprisoned his mother and actually had her in chains until the matter of succession had been settled to his content. As far as is known today, that tradition is not based in fact but it persisted and seemingly troubled Fernando Pessoa (himself a loving son) as a stain to the memory of Portugal's great founder-king. That inner trouble justifies the surprising rendition of "Countess Teresa", undoubtedly one of the most perplexing poems in Mensagem. Countess Teresa, dead, lives on in the world of spirits ("where the day is not") and through her prayers she shows only love towards her son, who aged and died but is eternally her little boy in the realm of the dead. At the time when the poem was written, a negative image of Afonso Henriques still endured, whence Pessoa's call for Countess Teresa's prayer to "change his destiny", i.e. "make him be seen at a kinder light by History". That, by the way, was exactly what happened when, in time, historical data prevailed over tradition...
- Count HenryCountess Teresa
..
Every outset is involuntary.
God is the agent,
The hero watches his own actions, confused
And unconscious.
On the sword found in your hands
Your glance falls.
"What am I to do with this sword?"
You raised it aloft; and it was done.
All nations are mysteries.
Each one is the whole world on its own.
Oh mother of kings and grandmother of empires,
Watch over us!

Your venerable breast nursed
With spontaneous and natural certainty
He who, unforeseen, God predestined.
Pray for him!

May your prayer change the destiny
To the one your instinct foretold.
The man who was your little boy
Has now grown old.

But, full of life, he is eternally young
Where you are, and the day is not.
In your ancient bosom, diligent,
Cuddle him once more.
..
NOTA: Ler as traduções efectuadas em 1997 pelo Prof. Mike Harland (que eu li antes de produzir as versões acima)-D.Henrique e D.Tareja.
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NOTA FINAL: D.Tareja é, dos poemas de Brasão, o de mais difícil interpretação sobretudo por causa da frase misteriosa "Dê tua prece outro destino". O poema consiste basicamente numa invocação ao espírito de D.Teresa que o poeta faz no seu próprio presente, isto é, muito depois da morte de D.Teresa e de Afonso Henriques. Qual então o sentido da invocação de um outro destino para quem já viveu a sua vida e, ainda por cima, tendo o seu destino sido a origem de Portugal? Para dar uma hipotética resposta a isto comece-se por considerar alguns dados relevantes sobre D.Teresa.
Como filha de Afonso VI de Leão, D.Teresa e o marido D.Henrique recebem do rei leonês o governo hereditário do Condado Portucalense no ano do seu casamento (1096). Afonso Henriques nasce durante a primeira década do século seguinte e o Conde D.Henrique morre em 1112. Em 1125 Afonso Henriques é armado (ou arma-se a si próprio, à maneira dos reis) cavaleiro num enquadramento de dúvidas sobre a sucessão no Condado. D.Teresa tinha entretanto tomado como marido um fidalgo galego (Fernan Peres de Trava) e parece apostada em manter o poder assinando os documentos com o título de "Rainha". São tentadas várias alternativas de divisão de prerrogativas entre mãe e filho mas, na sequência de uma "purga" de nobres portugueses que ocupavam altos cargos e que foram substituídos por fidalgos galegos, o infante acaba por exigir completo poder governativo sobre a totalidade do território do Condado, conduzindo a um confronto armado que ocorreu em 1128 nos arredores de Guimarães (Batalha de S.Mamede). Sabe-se que nenhum dos principais intervenientes neste confronto foi morto, que após esta data Afonso Henriques assume a direcção total do Condado e que essa situação foi aceite por todas as partes em presença (não houve qualquer tentativa posterior de inverter a situação através, por exemplo, de uma invasão de Portugal a partir da Galiza). Também se sabe que D.Teresa recolheu a um convento na Galiza onde morreu três anos mais tarde. Tudo isto é histórico.
Mas a história real de Afonso Henriques terá originado, após a sua morte, um poema épico do tipo do longo e magnífico Cantar de Mío Cid em que, como sempre acontecia nestes casos, a gesta do nosso primeiro rei foi "melhorada" com muitas pequenas e maravilhosas histórias acessórias tais como o Milagre de Ourique, a prisão a ferros de D.Teresa após S.Mamede, a maldição da mãe ao filho, etc... Este poema, de que infelizmente nunca se encontrou qualquer cópia, foi divulgado e tomado como base de outros trabalhos mais sérios, incluindo a Crónica de Duarte Galvão escrita cerca de 300 anos após a morte de Afonso Henriques. Estas pseudo-fontes sedimentaram a lenda de que o filho teria prendido a mãe a ferros quando os factos históricos que se conhecem parecem apontar S.Mamede como uma justa antecipadamente combinada- espécie de torneio em que os contentores sujeitavam, através do combate, o seu pleito ao julgamento divino e aceitavam sem discussão o respectivo resultado. Sendo assim, D.Teresa ter-se-ia retirado voluntariamente para o exílio na sequência da sentença divina, deixando ao filho o governo de Portugal sem que tivesse havido qualquer episódio de prisão da mãe pelo filho.
Na falta de factos históricos, os historiadores são frequentemente tentados a adiantar hipóteses para colmatar brechas (tal como eu, sem ser historiador, o fiz no parágrafo anterior). Frequentemente esta ficção toma a forma de uma construção do carácter das figuras históricas. Uns historiadores podem apresentar Afonso Henriques como nobre pai da nação que traçou, com grande visão estratégica, o futuro de um país independente e o foi consolidando tenazmente à custa de brilhantes vitórias políticas, sempre que possível, ou militares, quando necessário -o recente esquiço biográfico da autoria de Diogo Freitas do Amaral é deste tipo. Outros podem apresentá-lo como um belicoso obsessivo, espécie de berserker, capaz de pôr a mãe, já derrotada no campo de batalha, a ferros numa masmorra escura enquanto prepara os próximos ataques a territórios que descansavam à sombra de um ilusivo tratado de paz assinado com o traiçoeiro Henriques- imagem que alguns autores traçaram do nosso primeiro rei em finais do séc XIX e que muito influenciou o pensamento durante a 1ª República.
Antes de passar à interpretação do poema note-se que Fernando Pessoa nutria um grande amor filial pela mãe, como testemunham alguns escritos publicados após a sua morte, e que, portanto, devia considerar que a lenda segundo a qual Afonso Henriques pusera a mãe a ferros era uma grande mácula na reputação do nosso primeiro rei.
Pode-se interpretar este poema, então, como uma invocação a D.Teresa para que, no reino dos mortos onde se encontra, vele por Portugal e reze pelo filho esperando que ele seja visto positivamente pela História.
Em "D.Tareja" a personalidade de Afonso Henriques não é directamente referida como boa ou má. Mas através da visão de Pessoa o leitor conclui que quem, depois de morto, inspira tal carinho à mãe, também já morta, não pode deixar de ser um bom filho. "Dê tua prece outro destino" interpreta-se, assim, como: "que a tua prece faça com que os portugueses vejam o teu filho a uma luz gloriosa e favorável e não de uma forma negativa como hoje" (isto é, em 1928 quando o poema foi escrito). Curiosamente foi isso mesmo que sucedeu, graças aos historiadores do Estado Novo (e, recentemente e com excelente argumentação lógica, graças também a Freitas do Amaral) que demonstraram não haver qualquer fundamento histórico para a lenda da prisão de D.Teresa e muito menos que as pernas lhe tenham sido postas a ferros e por isso amaldiçoasse o filho!

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